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08 junho 2021

Ibn Khaldun (Reflexões): Consenso civilizatório e vida nômade

O legal de se aproximar de textos como Al Muqadidimah é que lidando apenas com o óbvio, fatos simples e universalmente aceitos, você começa a fazer associações e perguntas que ninguém mais faz nos dias de hoje.

O Ibn Khaldun era um Faqih, um jurista. Não que um jurista na tradição Judaíco-Cristã seja a mesma coisa que na tradição Islamo-Arábica, mas é assim, na forma de um juiz, que se define a atuação do Faqih na historiografia atual.

AUDIOTEXTO - Texto lido com alguns comentários

É possível se traçar um paralelo na relação do Rabbanut com a Torah, onde o consenso jurídico vai sendo moldado na Talmud. No caso Islâmico, que é uma tradição bem mais jovem que o Judaísmo, o texto que dá base a essa discussão jurídica é a Quran. No meu estágio atual de leituras, ainda não tenho certeza quanto a existência de um equivalente a Talmud no Islâmismo.

Update: Respondendo a essa pergunta, esse texto deixa a ideia que o equivalente seria a Fiqh, que não parece ser um livro fechadinho como a Talmud, mas escolas de pensamento mais dispersas...enfim as bases do Direito.

Islamic and Talmudic Jurisprudence: The Four Roots of Islamic Law and Their Talmudic Counterparts on JSTOR

What is Fiqh in Islam? - Quora 

O que é a talmud (explicação curta e contextualização)? ou aqui.

 O ponto é que nessas discussões jurídicas você começa a ver a busca por um consenso na interpretação de um conteúdo, o que vai depois ser peça central no “fazer ciêntifico”.

Update(comentário adicional): Pensar nessa construção do consenso ciêntifico, através do fato em sua forma bruta no horizonte de economia-historia-humanidade é complicado, porque essa discussão existe a uns oito mil anos então então você já transcendeu o fato simples com complexas explicações. Mas olhando para evolução da discussão em biológia o fato simples para origem da vida é a teoria da abiogenese (Spontaneous Generation), a partir desse fato simples a discussão ganha complexidade e o consenso se forma ao redor da melhor explicação para o fenômeno de origem da vida.

No caso da análise de fenômenos humanos, definir o fato simples é complicado porque usualmente você se depara com o "o que é" e com  "o que as pessoas querem acreditar que é".

Ciêntificamente o que importa é o primeiro (algo mais "hard science"), mas como as pessoas agem de acordo com o que acreditam (expectativas é um caso interessante) o segundo também é importante, e pra isso existe economia.

Filósoficamente isso aparece no mito da caverna 

Plato’s Allegory of the Cave - Alex Gendler - YouTube 

Essa questão do sistema de crenças, e da importancia daquilo que as pessoas acreditam tá bem discutida no Sapiens: Uma breve história da humanidade

 

  continua aqui 

Nos textos judaicos o mandamento é “não roubarás” (hipoteticamente) mas qual a definição de roubar? No debate de massa no Brasil, isso descamba fácil para uma troca de xingamentos, mas quando se impõe um approach técnico-científico-jurídico nisso, você percebe que para definir o roubo, primeiro é preciso definir o que é a propriedade.

E isso já começa a impor um outro set de questões filosóficas... Digamos que nas minhas terras haja uma pedra para a qual eu não dê importância, até que alguém se declare o dono dessa pedra. Quem tem o direito sobre essa pedra? O dono da terra, ou quem deu importância para a Pedra?

Uma coisa é fazer esse tipo de discussão em um terreno de 20mx20m em São Gonçalo, onde a pedra pode (hipoteticamente) ser um diamante, um fóssil ou ainda uma pedra sem valor. Outra coisa bem diferente é quando o terreno é um deserto arábico controlado por uma figura monárquica, e a pedra é a Kaaba. Quais são os argumentos que devem embasar tal discussão?

Invariavelmente quem escreve as leis/normas técnicas, tem um set de interesses.

Corrupção é tudo aquilo que o outro – o estranho faz – o que eu faço são negócios em que todos os lados saem ganhado.

Na discussão do terreno e da propriedade, é possível encaixar qualquer complicada disputa de fronteiras na contemporaneidade, no final ganha quem consegue construir o consenso.

A tradição judaica é a base do consesso em que vivemos hoje. E embora haja um esforço midiático de opinião pública para conectar esse consenso com textos clássicos da Grécia Antiga, o judaísmo em sua interpretação atual que é documentada nas talmuds, e outros tantos textos, tem uma troca de influências também bem forte com o Zoroastrismo.

Judaism and Zoroastrianism: Prof. Shai Secunda, Dr. Domenico Agostini & Dr. Samuel Thrope - YouTube

Quando você olha pra Israel hoje, essa disputa na construção de consessos civilizatórios/dominantes é um dos aspectos para se considerar, porque a oeste de Israel se forma um consesso relativamente uniforme no pensamento judaico-cristão, enquanto que a Leste, embora o Zoroastrismo enquanto tradição de ideias seja uma das estruturas mais bem  “academicamente mapeadas” (até pela influência que exerce no Judaísmo) ele não era uniforme e/ou universalmente aceito. Somente o Islam vai conquistar essa ampla aceitação no Leste de Israel.

Quando a falo a Leste e oeste eu não busco precisão geográfica, até porque o sul do mediterrâneo tem um comportamento compatível com Leste de Israel.

Ponto interessante é que a Leste de Israel você tem a tradição chinesa e o hinduísmo, que são um set de questões pro futuro, principalmente essa coisa Pitágoras-Hinduísmo-Metempsychosis-Bronze Age.

Em verde Israel, e as linhas são a Rota da Seda terrestre e marítima.

Silk Road Map, Silk Route Map, Tourist Map of Silk Road-Silk Road Travel (caso o link caia, uma print)

Ainda outro ponto interessante de olhar pra essas estruturas de ideias, é que elas são religião pra base, mas pro topo elas são uma forma de executar e legitimar o poder, e mesmo construir uma coesão social  - Asabiyyah. E olhando a instabilidade nas estruturas monarquícas-estatais dessa Arábia pré-islâmica faz algum sentido que essa estrutura de poder, fosse meio que autônoma, mas ao mesmo tempo instrumentalizada pelo monarca – é difícil trazer o conceito atual de Estado pra essa Arábia pré-islâmica.

***



Um outro ponto no que eu tenho visto/lido de Ibn Khaldun é essa questão do nomadismo em contraponto a vida urbana... e mesmo como uma forte dinâmica de coesão social pode substituir o Estado...alguns Libertários poderiam até ver nisso um exemplo prático do que é o Estado Mínimo, ou do que é a ausência de estado.

Estou em leituras iniciais, mas em direção a perspectiva do Estado como uma consequência da vida urbana em sociedade.

Numa outra dimensão me pergunto até que ponto seria possível uma vida de isolamento, não acho que abriria mão da internet, e aposto bastante na perspectiva de que algo como o Starlink e o próprio trabalho remoto vão nos levar a abrir mão e repensar várias coisas...Mas no que tange as facilidades da vida em sociedade, isso é mais difícil de abrir mão.

Quanto tempo leva para comer uma pizza? No ifood uns 30 minutos, mas e se por exemplo eu busco um certo grau de autossuficiência quais são os ingredientes que eu posso cultivar e quais é melhor comprar?

Olhar essa dinâmica de busca pela autossuficiência, em oposição a vida em sociedade te coloca numas questões do “Capital” e do começo da vida humana em estruturas sociais-urbanas.

Me peguei pensando até que ponto dá para pesquisar embalagens a vácuo e comida desidratada como uma forma para viabilizar uma vida nômade.

Porque em termos bioquímicos, e muitos eu nem sei explicar, o que estraga os alimentos é água e ar, se você consegue remover esses elementos os desafios logísticos de transporte e armazenamento, tornam-se superáveis.

A questão seria até que ponto é possível reidratar o alimento sem perder sabor e textura? Isso depois que ele ficou armazenado por anos e teve um custo de transporte bem menor.

O desafio de uma vida nômade na atualidade, não seria atingir a autossuficiência plena, mas sim ir cada vez menos ao mercado.

Eu gosto de acompanhar de planejamento de viagem de alguns velejadores do youtube tipo o Nahoa, Justsailing, Amyr Klink, Guruça...enfim...o desafio é ter comida com prazos de validade longos, e que ocupem pouco espaço.

E é interessante porque isso é também um desafio militar, o que faz o navio/submarino nuclear voltar para o porto são suprimentos básicos. Alguém poderia argumentar que os caras podem pescar, mas do mesmo modo o adversário também pode contaminar os peixes de uma região específica, com um derramamento de óleo. Isso é um cenário de guerra bem específico, que talvez fosse mais razoável na idade do bronze do que hoje...mas tanto um veleiro como um submarino nuclear, dadas as proporções tem fontes de energia ilimitada, e considerando as placas solares isso fica ainda mais interessante.

Session 1 - Reading Ibn Khaldun - Dr. Choukri Heddouchi - YouTube